Friday, December 03, 2004

Residência

Construí uma casa estranha
Em que havia
Infância,
Instância,
Casca de banana espalhada pelo chão,
Shampoo de marcujá,
Beijo na boca,
Pinceladas de alecrim,
Filme do Almodóvar na Tv,
Cortina de fumaça,
Sorvete de vinho branco e suave,
Revista de poesia,
Luzes de salão.

Construí uma casa estranha
Em que havia
Fotos de gente morta,
Acompanhando gente viva,
Telas de carvão,
Esboçando uma vanguarda retrógrada,
Rascunhos de cartas sentimentais em gavetas fétidas,
Lustres de idéias raras,
Tapetes de realidade,
Uma cama confortável,
Onde só cabem 2.

Construí uma casa estranha
Em que havia
Sonho... De padaria;
Livro de Flaubert;
E literatura de banheiro;
Família;
Música romântica de violão velho;
Marisa Monte no rádio chiado da cozinha;
Elton John para as visitas;
Espelho, maquiagem,
Máquina de escrever,
Moveis de vime,
Almofadas no chão,
Um coração lançado ao vento,
Batendo lento,
Contra as possibilidades do tempo,
E do amor.

Construí uma casa estranha
Em que havia
Paredes pintadas com um sangue idealista,
A sala um tanto cosmopolita,
Podia abrigar o mundo,
Sem compreender a própria decoração...
Um palco enorme em que se interpretam os dias,
Crianças percorrendo o quintal,
Fantasmas balançando nas cadeiras,
Aprisionados nas cadeias de si mesmos.

Construí uma casa estranha
Em que havia
A rosa vermelha, aberta, e total,
O estrangeiro que lembro a todo tempo,
Invadindo clandestinamente a vila,
O município,
O estado,
Tudo o que vivo.
Vem, e senta à minha mesa,
Olha-me nos olhos como quem ama,
Espero-o toda semana,
Sem ter a certeza de que volte...

Construí uma casa estranha
Em que havia
Entre teias de aranha ,
Casulos de borboleta,
Cheiro de eucalipto,
E de chuva na terra,
Amigos fazendo churrasco,
Samba e rock and roll,
Cinema no sótão,
Festa no terraço,
Suco de laranja,
Abacaxi e limão.

Construí uma casa estranha
Em que havia
Na cidade grande,
Todos os ares do campo,
Ares do oceano, e todos os ares,
Era a vida passando inteira sob meus olhos,
Como a velha rabugenta e sozinha da biblioteca,
Cheirando à laranja descascada depois do almoço,
À procura do que jamais encontraria,
Também as bailarinas, ensaiando sua Copélia,
Ravel compondo seu Allegro mais perfeito,
Tudo perfeito,
Sem que a perfeição existisse.



Eu resido em pensamentos erguidos em bairros periféricos, distantes do centro e da importância dos valores seguidos... Minhas ruas são desertas, não há transito, senão em dias de chuva e lágrimas. Não há barulho, nem entulho. As crianças ainda passeiam nas praças com seus pais, onde vivo. Por quê fiz um poema, se quase ninguém o leria? Por quê insisto em dizer quando o que digo pouco importa a quem ouve? Sou tamanha, e estranha, e também tudo o que construo, e vivo... A minha população encontra-se entorpecida, sem que eu precise legalizar as flores da Tailândia. Os casais ainda fazem amor, e nas travessas, em muros escuros, há declarações. As moças esperam bilhetes e flores, e as mães casamentos suntuosos. Estão todos envoltos em razões de cristal. E o que escrevo é um maremoto de incertezas me tomando certamente, transbordando minha alma até que eu não a possa guardar...

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home