Saturday, March 26, 2005

Verbo de Ligação

Despertei como se de algum modo o fato parecesse-me normal. Caminhei beirando às paredes, apoiando-me da mesma forma que os embriagados percorrem às ruas nuas e escuras da madrugada. Estava sóbria, até ali. Era preciso alimentar-me nesta manhã. Transbordei de vinho branco a xícara de café. Queria o novo. Abri as janelas e colhi as rosas em botão, enfiei-as num vaso senil esperando que minha insatisfação as murchasse como os girassóis de Van Gogh. Permaneceram sorridentes. Não retribuí.
O dia não era de sol. A brisa fria vinha de encontro ao concreto da cidade. Do alto, eu observava toda a fúria da metrópole. A solidão perturbava na mesma intensidade em que podia conclui-la como estado comum. As pessoas andavam na calçada – que exalam odor de urina – acompanhadas, mas sozinhas, entre a multidão solitária de mil rostos, vozes e obscuridades. Há dores e ócio todo o tempo: vitalidade virtual. Quais as razões para que a vida permaneça inerte na delinqüência da Polis?
O jornalista desempregado beija sua namorada, Maria caminha com pressa, a criança está sobre a bicicleta, o artesão lamenta a marginalidade de sua arte. A sociedade flui retrógrada e moralista, as flores de plástico enfeitam todas as salas. O poeta chora a morte de sua poesia, enquanto o comerciante vende, e a prostituta dorme durante o dia. Ninguém ouve os pássaros.
O aleijado pede esmolas. A igreja cega está em silêncio. O professor ensina o desnecessário, a menina contem sua alegria. Não há instantes guardados para a felicidade, e a garoa aguda cai sobre a praça vazia, molha os carros e os telhados. Ninguém olhou para o céu hoje.
O rapaz rabisca as paredes, o homem trabalha em desespero, a infância morre de tédio e de fome, a mulher respira inconsciente, a propaganda oferece sexo. Ninguém se emocionou de amor na confluência desta cidade.
Os apartamentos estão em escuridão isolada. Os bares em euforias hipócritas; O trânsito, parado, inspira a prece de que a tensão seja um dia recompensada. Corre-se no limite do insuportável. Vive-se por instinto, não por vontade. Ninguém foi ao cinema nesta Segunda feira.
Estou, pareço, permaneço, continuo, e fico.
-Constatações transmitidas ao papel em 14/03/2005

1 Comments:

Blogger Paulo C. said...

a urbe por vezes se mostra paralizada, mas está sempre em constante agitação.

é o vazio ou o cheio demais?

marginalizar e adolescer podem nos rejuvenescer alguns dias, e quem sabe até alumiar novas trilhas.

March 30, 2005 at 4:19 AM  

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