Saturday, July 09, 2005

Amores de um Santo

Era tarde, uma hora de sexta feira. Saiu do trabalho para o almoço. Não seguiu aos companheiros da jornada diária. Caminhou por direções contrárias, ofertou o vale refeição ao mendigo da velha praça Santa Gema Galgani. Recolheu-se, silenciosamente, após reverenciar o altar da catedral de São Padre Pio. Primeiro levantou os olhos, em seguida, abaixou a cabeça e os ombros, encostou ao chão apenas o joelho direito, e sobre o esquerdo, sobrepôs as mãos calejadas pelos afazeres árduos que continuaria em pouco mais de 56 minutos. Era quaresma, tempo de penitência e caridade. Na vila Basílio de Brandão, onde fora criado, lembrava-se bem do luto cristão. A igreja coberta de roxo e ladainhas a Nossa Senhora das Dores. O canto gregoriano de outrora, assola, ainda hoje, às igrejinhas interioranas: "Graças e louvores se dêem a todo o momento, ao santíssimo e digníssimo sacramento". Via-se, tão real, vestido em túnica branca, coroinha, repetindo o que nem mesmo entendia, junto às velhas que cheiravam cebola picada para a janta; mais velho, tinha fé mesmo pelas netinhas vestidas de renda e "crepe giorgette". Enfim, estava ali, trinta anos passaram-se; Era mais um perdido na cidade grande, entre as lembranças do crer na infância de bilboquê, esconde-esconde, e cabra-cega. Rezava rotineiramente, a Santo Expedito pela urgência de seu atendimento. À Santa Edwiges pelas dívidas que lhe perturbavam o sono, já tão curto pela falta de tempo. À Santa Terezinha, como Bandeira, ah, minha santa Terezinha! Em nenhum instante, Terezinha do menino Jesus o abandonara. Sempre lhe trouxera a rosa, sinal de que viria a graça pedida. Também intercedera por ele Santa Bárbara, em noite de chuva, e Santa Catarina de Alexandria, durante a prova da escola: um dia, teve medo de ser reprovado, entretanto, através do apelo ao bom Jesus da tão querida santinha, conseguiu, aos 39 anos, concluir o ensino fundamental.
Não tinha esposa, ou filhos, mas gostava, e muito, de faze-los. Acreditava-se um homem de bem. Aproveitou também, para rogar a Santo Antônio que lhe desse uma posição: quando é que viria a esperada? Mais uma vez, a prece de seu Tomé parecia ter a velocidade da internet globalizada. A informação chegou rápido ao céu. Faltavam ainda 25 minutos para o término de seu descanso, caminhou de volta o que já havia percorrido, parou na barraca de cachorro quente, e observou, sentada ali, Carolina, a moça mais bela que já vira - assim o disse a ela -, e que talvez não fosse tão moça assim aos seus 30 anos de idade. Tinha olhos negros, feições comuns. Qualquer outro rosto na rua poderia ser o dela. Mas era bela, repetia. Era diferente de mamãe Ana, e avó Clara. Aproximou-se, falou sobre todos os clichês possíveis. O céu, o tempo, o clima. Ela sorria e Tomé mal podia tirar conclusões sobre o que dizia. As palavras eram vãs, e seu olhar percorria a boca, o corpo, o jeito de Carolina. Não queria maionese para o almoço. Desejava Carolina, queria saboreá-la lentamente, como uma refeição de domingo. E depois, deitar na cama, e dormir com a barriga cheia, até alcançar os mais temíveis pesadelos de satisfação. Já a conhecia de algum lugar, não é? Não. Mas não importava. Foi embora com um telefone no bolso, e um desejo herege e impulsivo de devora-la.
As cinco saiu do trabalho. As seis chegara em casa. As sete pensava em telefonar. As oito estava quase decidido. As nove ouvia a voz dela. Ela não esteve surpresa, ele tremia ao todo. Sábado, cinema? Sim. Há meses não ia ao cinema. E foi quando lembrou-se da missa pela confissão comunitária. Cancelaria o compromisso. Deus sobre todas as coisas, no entanto, não resistiu, e mais uma vez a mulher levara o homem para além do jardim do Éden. Queria um amor sob o sol, que aquecesse a umidade deixada pelas lágrimas de tantos amores de chuva, esporádico, sem hora, porque sabe que a hora é sempre. Queria um amor para quem não fosse amor, nem felino, nenhum outro nome pelo qual poderia ter chamado quaisquer. Queria um amor para quem não fosse número, sem barulhos, sem cheiros, sem vozes ou espelhos. Quieto e gritante, calado, sem medo; que o olhar levasse ao leito, desnudando-o até a alma, sem artimanhas: a façanha de quem sabe sentir. Porque há dois tipos de morte: A de quem não pensa, e a de quem não sente. Queria um amor vivo, que dispensasse rodeios, formalidades, e soubesse, e pensasse, e sentisse a ele... Mais ninguém. Era tudo o que queria. Era mais do que precisava. Queria que chegasse a aurora, em nome do fim dessa madrugada inquieta. Amanheceu, e já era fim de semana.
Esperou todo dia, ansioso, entre um abre e fecha da porta da geladeira, e um vai e vem pelos corredores da casa. Dormiu, acordou, dormiu de novo. Quando estava apreensivo, fingia-se mais cansado do que era, de olhos fechados o tempo passa mais rápido. Chegara a hora. Ela estava a esperar-lhe. Olá Tomé. Ao ouvir sua voz, estremeceu; um ardor inconseqüente subiu-lhe entre as pernas, avançou o abdômen, e chegou à garganta fazendo-lhe soltar um cumprimento do qual não se lembra. Não havia o que dizer. A missa corria solta, os louvores, cantorias. Estaria ele perdendo o céu? Era Eva, sabia que ela era. Ele queria ser Adão, decidira doar a eternidade em troca daquele instante, e então, quem sabe, chegar ao paraíso desconhecido pelos homens castos.
Acordou, sobressaltado pelo relógio que abalizava 6 da manhã. Deixou-a nua sobre a cama que passaram toda a noite, e então, só recordo-me de tê-lo absolvido.
- Filho, a que vens?
- Tive à Carolina; e é que poderia ser Maria, Raquel, filha de Sião... Mas é Carolina, padre. E nenhuma Carolina foi santa, ainda. Pelo nome, soube que não poderia ama-la. Não a interpelavam por santa.
Tomé teve de vê-la mais que todos, para crer.
- O Senhor tenha compaixão de vós, perdoe o vosso pecado, e vos conduza à vida eterna.
Foi assim, que na semana seguinte, saindo da confissão, conheceu Luciana. E na outra, Regina. Nada mudara desde a infância. Com todas, disse amar, e com todas, não amou. Porque nenhuma delas foi santa o bastante, para honrar a fé que possuía. E nas tardes mal almoçadas, continuou a rogar a Santo Antonio.
É uma lembrança inquieta de um cinismo sombrio que me procura toda a noite. Um cicerone assim, aberto, sem quaisquer anestesias. E a palavra percorre meu corpo, sai correndo feito moleque sapeca entre meus dedos... A palavra que achei que fugira. O filho pródigo não retornou à casa, mas saibam que a mãe já não o espera. Desespero ou fantasia? Se ao menos não tivesse mentido tanto... Gaste tuas riquezas todas filho pródigo, que não trago em mim as palavras sábias da Boa Nova, nem tenho as mãos e os pés lavados por Cristo. Em minha ceia tu já não partilharás... Guarde teu beijo de Judas para outros. Venda a ti mesmo pelas tuas trinta pratas, que não vales mais que isso. Que a multidão não me aclame em Jerusalém, para que ela mesma não esteja a mitigar-me na cruz. Ainda hoje tu não estarás no céu comigo, desço do meu calvário, e grito: A salvação é pela arte, que o amor... O amor é o que condena. Encontrarei outras Bem Aventuranças, que por estas perdi-me pelas veredas do teu nome. Não salmodiarei por Salomão, nem por Davi. E se o profeta invocar-me direi que sou apenas uma criança. E se não puder comungar de outro corpo, então confessarei meus pecados todos, sem remorso algum, porque é pelo corpo e sangue que se chega ao paraíso. E na pobreza dos meus louvores à razão simplória a que submeto-me, tornar-me-ei segregada entre hebreus e colossensses. Não há deserto, o povo não foge do Egito. Espero a luz que me cegará, para depois ungir-me entre apóstolos. Que ela mesma traga-me um novo rebanho, e a armadura dos que crêem da vida, e na palavra dos homens bons.

Sunday, July 03, 2005

O Agricultor

A meia claridade adentrava o salão escuro e contente. Era uma festa muito feliz. As vozes juntas formavam um coro para além do canto gregoriano... E sobre o palco imaginário um menino segurava um violão. Na minha insignificância eu o observava. Talvez ele jamais tenha notado que há meses o observo.
Ele é um jovem artista, com a seriedade de pessoas comuns; entretando, é errôneo percebe-lo como caminhante ordinário: está distante da mediocridade. E no seu silêncio, quase de um sujeito religioso, permaneço perplexa na vã tentativa de decifra-lo. Mas ele fala o silêncio. E o silêncio dele é lindo, aponta-nos respostas todo instante.
Um agricultor: a melodia, por ele cultivada, semeia emoções... E na primavera que esperamos, por certo, nascerão novas almas. Ele as planta, e ele as colhe.
Sou uma dessas novas almas. Não é que eu o ame. Eu o admiro. Sentada (talvez muito abaixo do palco imaginário)percebo toda a minha pequenez sob o sublime.