Wednesday, October 25, 2006

Cognição

Isabel repousava enquanto a televisão ainda ressoava na madrugada. Estava frio. Movia-se entre os lençóis, as almofadas e os travesseiros. Era ela o minúsculo grão de mostarda envolvida pela lavoura da modernidade. E ao balizar das três horas, seus olhos entreabriram-se, assustados, como se houvesse despertado de um letargo. Estava cedo ainda, ela o sabia, entretanto, como se não soubesse nada, contara os minutos que se seguiam um após o outro, sem interrupção, entregando-se a um desespero contínuo: a amargura da certeza. E de todas as inverdades que a cercavam, as alegorias, as afeições, as alegrias, de tudo isto e aquilo não mais que transitório só restava-lhe a verdade aberrante e absoluta: o fim. Pigarreou. A boca seca mal podia engolir a saliva. A verdade havia tomado-a a ponto de não encontrar razões. Em um salto rápido, estendeu os braços, acendeu a luz. Caminhava alongando-se como para livrar-se da tensão intangível a que esta veracidade a submetera. Então, ela também morreria? E sua família, e seus amigos. Coisa estranha pensar que tudo o que é vivo um dia também será morto. Seria esta a motivação dos heróis? A idéia interiorizada da mortalidade inevitável é o que encoraja e o que amedronta, é o que desperta catarse ao assistirmos às tragédias e o que nos faz acordar todos os dias e alegrarmo-nos porque faz sol. Mas ao olhar a vida através desta certeza, tudo perdera o sentido para ela: a prática, a rotina, a poesia. Como se nada do que fizesse e soubesse, pudesse retirá-la da solidão dos que morrem conscientemente.
Depois do arrepio esclarecedor, Isabel desejara apenas nunca ter sabido. Vestiu-se e saiu para trabalhar como fizera todos os dias até aquele instante. A vida seguia seu curso e ela fingia ser como os outros.

Thursday, October 19, 2006

Poeta Parco

Há uma angústia por haurir. O poeta espantadiço caminha pela rua em que perdera as palavras. E as encontra partidas, dispersas, fugazes, perdidas entre as falas de gente corriqueira, das moças para as quais poema é namorico.

Hoje, sou o poeta de nenhures, cuja sorte é ter perdido a inocência e em cuja poesia há o estigma do asco. Ela nasce de um desencanto colorido, de um palhaço que riu quando chorou, de um azul que norteia nossos sonhos, de uma rosa que era bela, mas murchou.

Hei de cantar a desesperança, em meio às charlatanices dos recatos, pelos versos mais baratos e as rimas mitigadas. Serei o dizer das centelhas apagadas, o rastelo de agricultores urbanos, o poeta fulano que desaprendeu a escrever.